sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Retratos de Clarice


Se há algo de definitivo a se dizer da prosa de Clarice Lispector, é que esta não é normal. E normalidade, em todos os sentidos, por ela é negada. Seja em relação à sua óbvia grandiosidade, representativa de nossa literatura, seja em relação aos aspectos intrínsecos de seu estilo deveras peculiar.
A palavra de Clarice (palavra viva, escrita com todo o corpo) revela uma prosa intimista, em que o próprio texto se faz personagem e age com toda sua personalidade sobre o leitor. Assim somos devorados por sua escrita labiríntica e vertiginosa, consumidos por seu pulso expressivo ao captar cada detalhe em todo instante de poesia.
Retratos de Clarice trata de sua última obra A Hora da Estrela, buscando compreender o funcionamento dos elementos narrativos sob variadas perspectivas.



Por Fellipe Marinelli

Desnudando uma Ótica Centralizadora - Por Que uma Máscara Autoral Masculina?
Clarice Lispector ao eleger como pseudo-autor e narrador de sua obra ficcional “A hora da estrela” a voz narrativa masculina, deseja colocar em debate a questão dos limites entre autoria e o fazer artístico, entre realidade e ficção, como também, e mais enfaticamente, colaborar para resolução das contradições a respeito da escrita feminina: uma modalidade de escritura analisada pela crítica literária da época como uma arte menor, e categorizada dessa maneira, por ser acusada de veicular um discurso de interesse específico das mulheres.
Sabiamente, a autora revestida da máscara autoral, do heterônimo Rodrigo S.M., afirma: “também eu não faço a menor falta, e até o que escrevo um outro escreveria / um outro escritor, sim, mas teria que ser homem, porque escritora pode lacrimejar piegas”. É de forma totalmente irônica que o deus, como se refere o narrador-personagem as mãos que o tece, justifica a sua escolha de uma voz masculina para a história a qual será construída. Ao revelar que qualquer escritor seria capaz de tecer um enredo ralo e insignificante como aquele, exceto às mulheres, Clarice sarcástica e intencionalmente põe em discussão o preconceito em relação à escrita classificada como feminina, além de questionar a profundidade das obras literárias concebidas pelas mãos legitimadas dos autores do “primeiro sexo”.
O romance “A hora da estrela” tem como objetivo central revelar a vida a uma moça nordestina, dentre milhares de outras; nordestina esta que fixou a sua imagem no interior do autor-narrador e reclama a sua existência. Rodrigo S.M. afirma que escreve, tentando libertar-se o mais rápido da presença angustiante dessa datilógrafa.
Ao arquitetar o enredo do romance e traçar os contornos da personagem Macabéa, Rodrigo que além de autor atua também como peça importante do enredo, aproveita-se do processo de escritura e criação para descobrir a si mesmo. É por meio do processo artístico de composição da personagem rala, insignificante, nadificada, ignorante, incompetente e feia, que o autor “fictício” ganha vida e contornos delineados, visto que sua vida possui duração limitada, pois durará o tempo destinado à narração da hora de Macabéa.
Mesmo sendo dependente desta moça nordestina para ganhar a vida, já que se constrói no mesmo momento da materialização do signo linguístico, o autor e narrador-personagem da obra diegética julga-a, carnavaliza e desconstroi toda a sua humanidade, e mais, aponta suas características incompatíveis com a feminilidade, isto é, a impossibilidade da nordestina em tornar-se mulher.
A personagem Macabéa é toda construída sob amarras e limitações. O narrador-personagem, Rodrigo S.M., priva-a de se constituir como mulher, do contato com o mundo, dos desejos e vontades, da sensualidade. Ele a narra como sendo subterrânea e, por esse motivo, não havia tido, nem nunca haveria de ter floração, porque a datilógrafa era “capim vagabundo”.
É interessante ressaltar, que ao atribuir as funções de autor e narrador a um ser ficcional do gênero masculino, a autora real da obra literária deseja desnudar a ótica masculina, isto é, revelar por meio de voz textual máscula o pensamento e posições ideológicas preconceituosas / passadistas dos integrantes deste gênero centralizador em relação às mulheres e questões ligadas à feminilidade.
Através do discurso pronunciado pelo narrador-personagem, nós leitores somos tomados ora por uma intensa e constante angústia, ora por uma sensação de repulsa e raiva, por observar um tipo humano passivo, miserável e confortado de sua condição: o de representar somente o papel reservado a exercer.
O pseudo-autor atribui a personagem Macabéa características destrutivas, precárias e miseráveis, fazendo com que ela não seja enquadrada em nenhuma categoria, por ser dessemelhante de todas as existentes. A personagem é formada pelas avessas, pela paródia, podendo dessa maneira dizer que ela é o contrário de todas as especificidades femininas, simplesmente por ser ausente de elementos biótipos da feminilidade.
Macabéa é composta de maneira antitética em comparação ao estereótipo feminino em vigor: “[...] mal tem corpo para vender [...]”; “[...] assoava o nariz na barra da combinação, não tinha aquela coisa delicada que se chama encanto [...]”; “[...] o fato de vir a ser mulher não parecia pertencer à sua vocação [...]”. Ao dizer o explicitado acima, o narrador sugere que faltava-lhe a substância, isto é, o “delicado essencial”. Enquanto a ótica patriarcal observa a mulher como um ser animalizado, não dotado de razão, portanto tendo a necessidade de ser domado e adestrado, a fim de controlar os ilimitados desejos; a personagem alagoana é arquitetada em oposição a esta visão padronizada. Macabéa quase não possui desejos, ou quando os tem, esquece-os e arrepende-se de tê-los tido; não faz questionamentos; aceita resignada às criticas e sua condição miserável e, é satisfeita, mesmo sendo oprimida por e subserviente a um sistema social indiferente.
Enfim, ao trazer para o campo literário uma mulher tão díspare dos demais tipos femininos, uma figura feminina sem vigor, sem personalidade, sem encanto, ausente de desejos e “incompetente para a vida”; Clarice – ou o próprio Rodrigo – deseja[m] promover uma consistente reflexão que tangencia as ilusórias diferenças entre a posição e função do homem e da mulher no contexto sociológico e histórico.

Prosseguindo os assuntos debatidos neste trabalho, devemos retomar questões levantadas, porém pouco desenvolvidas. Então, no início desta segunda parte, sugerimos que ao tecer sua última obra ficcional, a novela “A hora da estrela”, Clarice Lispector desejasse desabafar, colocando em evidência problematizações sobre a categorização da escrita sexista, definida assim, por teorias biológicas e anatômicas.
É sabido que nenhum ser humano ao nascer possui uma sexualidade definida. Como afirma Freud em uma das suas asserções: “ninguém nasce homem ou mulher – tornamo-nos homens ou mulheres ao atravessar com sucesso o percurso edípico.” Utilizando o explicitado pelo psicanalista Freud, desejo assinalar que o que identifica a escrita como sendo pertencente a modalidade feminina, não são, tampouco, os traços naturais sinalizados pelo indivíduo de posse do texto, mas sim, quando o registro tanto no plano temático quanto no expressivo / simbólico apresentam um discurso e uma melodia narrativa tão somente encontrada na feminilidade.
Macabéa intencionalmente é um ser ficcional constituído segundo a ótica centralizadora e castradora do universo masculino, já que é por meio das diferenças apontadas no físico, ações e pensamentos da nordestina, em comparação aos demais tipos femininos, que a autora revela sua opinião divergente da alienada sociedade, porque desconsidera a diferença entre homens e mulheres.

Não se trata apenas de narrativa, é antes de tudo vida primária que respira, respira, respira. Material poroso, um dia viverei aqui a vida de uma molécula com seu estrondo possível de átomos. O que escrevo é mais do que invenção, é minha obrigação contar sobre essa moça entre milhares delas. È dever meu, nem que seja e pouca arte, o de revelar-lhe a vida.
Porque há o direito ao grito.
Então eu grito.
(A Hora da Estrela, 1998 p.13)

Na tessitura textual podem-se detectar marcas específicas da modalidade de escrita adjetivada como feminina, ou seja, é observável um modo de tecer cujo desejo é romper os limites do próprio signo lingüístico, na luta infindável de coisificá-lo e dessimbolizá-lo. Além de ser um tipo de escritura que se distancia dos demais pelo víeis simbólico, o registrado na obra literária de Clarice diferencia-se das atribuídas aos autores homens, pelo fato de se envolver com a queda de tabus sociais, com as questões ligadas à mulher e por destronar de maneira bastante equilibrada, as posições ideológicas, sociais e culturais hegemônicas que oprimem, inferiorizam, excluem e restringem o ser humano em categorias fixas, definidas somente pelas forças naturais sinalizadas pelo corpo, ou seja, pelos órgãos sexuais.
Referências Bibliográficas:
HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Imago.
LISPECTOR, Clarisse. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.SANTOS, Jair Ferreira de. O que é pós-moderno. 10.ed. São Paulo: Brasiliense, 1991.

(Fellipe Marinelli é estudante do 8º período de Letras,
no Centro Universitário Plínio Leite)




Por Idrissa Novo
(Des)Conformação dos Personagens em "A Hora da Estrela"
1. PANORAMA LITERÁRIO

O Modernismo foi um movimento preocupado em anular tudo o que antes existia. Para a nova escola, negar o passado era uma maneira de se formar o presente e pensar no futuro.
Esse novo período literário teve seu surgimento no Brasil com a chamada “Semana de 22”, que propunha ideias inovadoras, pautadas nas vanguardas européias: futurismo, cubismo, expressionismo, dadaísmo e surrealismo.
Os Andrades, Oswald e Mário, construíam suas obras sob o princípio de negar o lusitanismo exacerbado e edificar uma identidade essencialmente brasileira – indígena, negra e branca ao mesmo tempo –, uma perspectiva nacionalista.
A dita segunda fase modernista, contrariamente neste ponto, opõe-se ao caráter demolidor da produção literária da geração anterior, substituindo as propostas de destruição da tradição por uma perspectiva construtiva, que revaloriza o passado e amadurece os ideais primordiais.
Esse ponto de vista construtivo aponta já para aquela que se convém chamar de terceira fase modernista. Os autores dessa geração procuram atingir o senso de compromisso entre o senso e realidade, valorando o engajamento de suas obras na vida social. Além disso, praticam a literatura como constante pesquisa de linguagem.
Dos escritores de renome dessa fase modernista, releva-se aqui Clarisse Lispector, não mais importante que os outros, mas aquela unicamente capaz de dialogar tão bem com as fronteiras do indizível.

2. CLARISSE LISPECTOR – (PÓS) MODERNISTA

No século XIX, Friedrich Nietzsche houvera proclamado a morte do Deus soberano e absoluto. Ao lado da vertiginosa aceleração técnico-científica, da velocidade e do progresso, assimilava-se a ausência de valores humanos, proporcionados pela família e pela religião – instituições ainda sólidas.
Mais tarde, a partir dos anos 60, Derrida começa a formar a ideia de que o homem não é um ser bidimensional, cartesiano. Atormentado por mais não ser estruturado, o sujeito entra em crise: sou nada? sou tudo? sou nada e tudo? Está, então, marcado o “surgimento efetivo” do chamado pós-modernismo.
O homem pós-moderno é hedonista, consumista, amante da tecnociência. Vive na sociedade do espetáculo; prefere o virtual ao real (hiperreal simulado). Tem que fazer escolhas e tomar decisões de maneira rápida, impulsiva. E, acima de tudo, é fragmentado: uma unidade constituída de pluralidade.
A partir desse pensamento, é que se fala em desreferencialização do real e dessubistancialização do sujeito: 1) o referente não é mais reconhecido na realidade e sim no seu simulacro; 2) o sujeito não mais reconhece a sua identidade, desconstruída pela avalanche de informações que o cercam.
Mas, enfim, o que Clarisse tem a ver com esse pós-modernismo? Ela não pertence à escola modernista?
Ora, bem se sabe que a literatura não é um estudo de cronologia. As ideias mais veementes de um período não deixam de existir subitamente para que outras emirjam do nada.
Deste modo, quando se traça uma ponte entre Clarisse e a literatura pós-modernista, está se querendo valorar a sua forma de fazer poético. Assim como essa nova postura literária, a escritora não mais segue à linearidade, não constrói personagens bem definidos – é o reconhecimento também da descentralização da escrita.

3. A HORA DA ESTRELA

Um exemplo dessa escrita não-linear da Clarisse é a novela A hora da estrela. Aqui breve faremos um comentário sobre o enredo do livro, para que logo após se teça um específico estudo sobre os principais personagens desta trama.
Macabéa é uma nordestina que tem sua história contada por Rodrigo S. M., máscara autoral de Clarisse. A moça é uma mísera datilógrafa, desprovida de beleza e que mal tem a consciência de existir. Conhece a paixão através de Olímpico, nordestino ladrão e assassino, que logo a troca por Glória, colega de trabalho de Macabéa.
No mais, consulta uma cartomante, que lhe predestina um glorioso futuro, mas acaba por ter um fim desastroso – a morte por atropelamento. Finalmente, chegara a hora da estrela.



4. PERSONAGENS

Como já se sabe, Rodrigo S. M. é o narrador d’A hora da estrela. Ele diz que a sua história terá sete personagens. No entanto, apenas cinco são mais relevantes: Macabéa, Olímpico, Glória, a cartomante Carlota e o próprio narrador.
Macabéa é a personagem principal. Vinda de origem nordestina, era considerada “desprovida de insígnias femininas”; estava perdida em si mesma. Símbolo do não ter e do não ser – sem beleza, inteligência, riqueza. Sem família, sem centro. Representa aquele que está marginalizado; é capim.
Gostava das curiosidades banais. Era uma datilógrafa que errava demais e não sabia se expressar. Virgem e inócua – pura e inocente. Mas, até onde ia essa pureza? Somente no corpo? Talvez no espírito. Ou mais: na linguagem simples. Assim como a língua, virgem e inócua. Macabéa é, então, a própria palavra. A própria existência.
Suas perguntas eram aparentemente desinteressantes. Todavia, não está nas coisas mais simples, a existência? O nada revela a existência. Macabéa é “vida primária que respira, respira, respira”.
Mesmo assim, era dispensada por todos. Até por sua única paixão – Olímpico. Como a moça, ele era nordestino. Contudo, ao contrário de Macabéa, ele tinha a seu favor o dom do discurso. Era ladrão e assassino, de caráter definido. Era fértil, viril.
Logo dispensa a moça de “óvulos murchos” para ficar com a colega de trabalho de Macabéa. Glória (que nome sugestivo) era bem-sucedida profissionalmente – estenógrafa hábil -, tinha sensualidade e era “filha de açougueiro”. Tinha estabilidade e status – “carioca da gema”.
Desamparada, depois de tanta humilhação, a nordestina vai a uma cartomante (sugestão de Glória). A vidente Carlota representa a figura da mãe zelosa. Personagem cheia de dualidades é santa e prostituta; ex-caftina e temente a Deus. Vivia na periferia – lugar onde se encontram os místicos.
É ela a responsável por “levantar o véu da verdadeira condição existencial de Macabéa”. Com o discurso altamente fluente, primeiro revela à moça a vida desafortunada que esta possui. Depois, constrói um texto bem estruturado em que relata as soluções para os problemas enfrentados por Macabéa. Ela reverte a derrota em vitória.
O futuro de Macabéa está traçado. Ela descobre a hora em que pode finalmente ser estrela: na hora de sua morte.

4.1. Rodrigo S. M. e Macabéa

Um dos personagens mais interessantes na obra é Rodrigo S. M. Primeiro, porque, como já dito, ele representa a “máscara autoral” de Clarisse Lispector. Temos aí a primeira questão instigante acerca desse narrador. A escritora elege um homem para contar a história de uma mulher. Por quê?
Ora, um homem é, sociamente constituído, como um ser lógico, objetivo. Portanto, pode muito bem contar algo de forma imparcial, sem muita melancolia, utilizando uma linguagem “simples, fria e calculista”. Rodrigo não pinta Macabéa; ele a fotografa.
Entretanto, o mais interessante nesse personagem é a sua relação com Macabéa. Parece que ao relatar a história da moça, o narrador se auto-descobre. Ao mesmo tempo em que descreve as características da nordestina, questiona as sua própria condição humana na sociedade.
Às vezes, ele deseja o segredo; noutras o grito. Macabéa também ora se auto-questiona, ora sente explosão.
Rodrigo, paulatinamente, constrói a nordestina – “trabalho de carpintaria”. Macabéa é uma vida, que se ergue pouco a pouco. Por isso, faz-se necessário falar do processo de construção, dando-nos a impressão de que criar é um processo demorado e que requer paciência, assim como o fazer poético.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

De tudo o que foi falado, o que se pode apreender sobre Clarisse é esse jeito especial e singular de falar de questões aparentemente indizíveis. Também, ponderar sobre o processo de construção poética, por meio da história de uma nordestina, faz-nos reconhecer a genialidade dessa grande escritora para escrever como uma canção que vai-volta e nos embala.



6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Imago.
LISPECTOR, Clarisse. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.SANTOS, Jair Ferreira de. O que é pós-moderno. 10.ed. São Paulo: Brasiliense, 1991.


(Idrissa Novo é estudante do 6º período de Letras,
no Centro Universitário Plínio Leite)