segunda-feira, 4 de outubro de 2010

O Inimigo do Mundo de Leonel Caldela (Jambo Editora)

Por Hans Paul Mösl Junior

Olá, camaradas internautas.

Temos aqui um romance de fantasia de um escritor brasileiro.

Acompanhei parte de seus trabalhos, li muitos de seus contos publicados na revista de RPG Dragão Brasil e posso dizer que ele possui um estilo literário bem interessante.

O Inimigo do Mundo conta a história de um grupo de companheiros que vagam pelo mundo caçando um assassino estranho e perigoso. Paralelamente a esta história, uma outra se desdobra em uma esfera maior. No mundo fantástico onde o romance se passa existem Deuses, com suas vidas, preocupações e dificuldades.

De forma bem articulada as histórias influenciam-se, tornando o desdobramento envolvente. O que mais impressiona é a capacidade do escritor de descrever o ambiente. Sua narrativa passa sensações e ideias de forma bem clara, tornando fácil a construção do universo lúdico da história. Os acontecimentos vão se sucedendo em grande velocidade, o que impede a monotonia da leitura. Cada página um novo estímulo, uma nova revelação.

Uma história de monstros fantásticos, poderio mágico, deuses poderosos, heróis antagônicos e um vilão que amadurece ao longo da história. E no meio de tudo Horror, um mal maior e sem explicação.

Algo importante deve ser visto, porém. O romance de Leonel Caldela usa como pano de fundo um cenário de RPG de nome Tormenta. Conhecendo o cenário, a leitura é fácil. Tive muitas referências. A leitura desse livro por uma pessoa “leiga”, por assim dizer, pode complicar a sua compreensão. O escritor parece compensar isso com constantes explicações e descrições.

Concluindo, considero o livro muito interessante, cada página valeu sua leitura, e a técnica de descrição e narrativa do escritor consegue passar muito bem as sensações e ideias de um livro que envolve horror, fantasia, monstros incompreensíveis e heróis.

Grande abraço para todos.

Em breve escreverei sobre o segundo livro da trilogia de Leonel Caldela: O Crânio e o Corvo.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Desejo e reparação: Entre História e histórias


A primeira impressão passada pelo filme Desejo e reparação (Atonement, 2007), dirigido por Joe Wright, é a de mais uma das monótonas adaptações de romances best-sellers internacionais – na maior das vezes, dramalhões acerca das dificuldades de relacionamento em períodos históricos nada propícios a “grandes amores”, ou reflexões sobre temas tabus nos tempos de El Rei. Felizmente, nada disto. Desejo e reparação mostrou-se como uma obra sensível e de forte senso crítico, revelando o quanto o poder das palavras pode influenciar no decurso da História.
Adaptado da obra literária do escritor britânico Ian McEwan, a produção cinematográfica trata, como já explicitado no título em português, de temas como a paixão e o ressentimento. A tônica do “tempo perdido” é metáfora recorrente na obra, que apela para um enredo não-linear, costurado por flashbacks, os quais pretendem apontar para as diferentes perspectivas assumidas sobre um mesmo acontecimento.
Tendo como pano de fundo a Inglaterra de 1935 e a eclosão da 2ª Grande Guerra, a trama se desenrola em torno da vida de um casal apaixonado (Cecilia Tallis e Robbie Turner), que tem sua história de amor interrompida pela própria irmã de Cecília, Briony Tallis, de apenas 13 anos, que também guarda em segredo uma paixão por Robbie. Briony, aspirante a escritora de grande imaginação, constrói o mundo a sua volta, preenchendo as lacunas dos pequenos acontecimentos que vivencia – cada passo seu é acompanhado pelas batidas da máquina de escrever que, enfim, acabam por tecer a própria história contada.
Desejo e reparação é, sobretudo, um filme que explora a dinâmica estabelecida pelas frestas da História e da história narradas, assunto tratado de forma delicada. A culpa, sentimento que atormenta a personagem Briony, desencadeia uma série de reflexões acerca de questões como a perda da inocência e a grande importância que podem ter pequenos atos, os quais por muitas vezes passam despercebidos. Assim, a Literatura torna-se elemento fundamental na vida de Briony, que busca, até as últimas consequências, “reparar” os danos causados a sua irmã, trançando os fios narrativos entre ficção e realidade.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

O leitor de / em / para Budapeste e a análise das estruturas narrativas do romance pós-moderno



De Fellipe Marinelli, Paulo Braz e Raquel Valadares

Introdução:



À maneira como se vem tratando os estudos teóricos de literatura contemporânea, Budapeste, romance de Chico Buarque, é exemplo de uma estética multifacetada e em constante movimento. Para a realização deste trabalho, pretende-se abordar a referida a obra a partir de um estudo focado nas discussões dos aspectos estruturais e temáticos característicos de uma literatura pós-moderna.
Deste modo, procura-se, também, perceber como interagem os elementos constitutivos da narrativa no intuito de se trabalhar a questão da autoria e o papel fundamental do leitor para a construção de sentido.

Elementos da narrativa e a dupla personalidade/identidade de José Costa:



O ex-cêntrico, o off-centro: inevitavelmente identificado com o centro ao qual aspira, mas que lhe é negado. Esse é o paradoxo do pós-moderno, e muitas vezes suas imagens são tão divergentes quanto o pode sugerir essa linguagem descentralizada... (Poética do pós-modernismo, p. 88).

Antes de qualquer coisa, Budapeste é uma obra dividida. Realiza-se um jogo de espelhos, no qual o personagem principal, José Costa, é o elo de duas instâncias, que não necessariamente se opõem, mas refletem sua alteridade, parte de si que se faz outra. Diz-se assim, devido à forma como se constituem os elementos da narrativa e tal pode ser visto na própria organização do livro em capítulos ambientados, alternadamente, ora no Rio de Janeiro, ora na capital húngara.
O romance de memórias, atribuído ao escritor pós-modernista Chico Buarque, apresenta como narrador-personagem uma “persona” extremamente fragmentada, impossibilitada de contemplar/constituir por inteiro, que aceita passivamente sua condição anônima e também a de homem que vive à sombra de quem brilha.
Naturalmente, pensa-se que este homem gostaria abandonar este lugar obscuro, este espaço onde ele é simplesmente mais um dentre tantos outros, porém o que se observa é um sujeito satisfeito com obscuridade em que vive, já que a evidência, isto é, a fama, incomoda-lhe.
É impressionante, contudo, constatar que este mesmo personagem, José Costa, que se resigna a ser mais um, rejeita a idéia de uniformização, naquilo a qual julga ser de sua competência. Pode-se observar isto, quando o narrador se depara com os jovens redatores contratados por seu sócio, e treinados para a executarem as tarefas à sua imagem e semelhança, não só na maneira de estruturar os textos, mas também agir, pensar e se expressar ao seu modo, exprimindo formas pertencentes a sua identidade.



Quando me vi cercado de redatores, todos de camisas listradas como as minhas, com óculos de leitura iguais aos meus, todos com o meu penteado, meu cigarro e minha tosse, me mudei para um quartinho que estava servindo de depósito atrás da recepção. (Budapeste, p. 25).


É interessante dizer que José Costa, estando diante de qualquer situação complexa, turbulenta e conflituosa, sente a necessidade de migrar para outro ambiente, a fim de escapar e consequentemente esquecer dos problemas provocados por sua incompatibilidade momentânea com as outras pessoas e com o local.
Estes constantes e ininterruptos conflitos obrigam-no a distanciar-se de sua posição acomodada inicial e realizar a sua primeira viagem com destino ao país de língua magiar, viagem esta que iniciaria o processo de transformação em sua vida, fazendo-o abandonar a obscuridade e colocando-o numa posição de destaque.
Convém dizer que as relações de Costa se dão sempre em virtude do signo lingüístico, pois de alguma forma, ele é aquele que se oculta na linguagem: a esposa Vanda é apresentadora de noticiário televisivo, o sócio Álvaro comercializa os seus escritos, e em virtude do desespero por deglutir o idioma húngaro, fará com que se relacione com Kriska, uma contadora de histórias incumbida de lhe ensinar a nova língua.
As freqüentes fugas de José Costa, ora do Rio, ora de Budapeste, acontecem pelo fato do personagem nem conseguir enfrentar nem solucionar os problemas cotidianos e existenciais, já que se solucionados poderiam revelar a verdadeira identidade/subjetividade do sujeito camuflado pelo terno acinzentado e que escrevia para outros assinarem.
O ziguezaguear incessante de Costa entre as ruas, pontos turísticos, hotéis do Rio de Janeiro e de Budapeste apresentam arcabouços humanos distintos, possuidores de características psicológicas, emocionais e ideológicas dessemelhates. Essa metamorfose não acontece apenas por causa da significativa mudança fonêmica evidenciada no nome do personagem, de José Costa para Zsozé Kosta, na língua magiar, mas sim porque em Budapeste o personagem se depara com um ambiente libertador, próspero, colorido, e acima de tudo compatível com seu desejo de autotransformação, e sua sequidão em reviver novas experiências, tanto nas questões profissionais quanto nas afetivas.

Com a Vanda, aliás, eu nem abordava mais esse assunto, porque ela sempre tinha uma resposta para tudo (...) é verdade que a Vanda tampouco se preocupava em saber que grandes escritores eram esses que eu encontrava todo ano em congressos que ninguém noticiava (...), portanto seria estúpido relatar, sem convicção, a uma Vanda que não queria ouvir, a minha madrugada solitária em Budapeste. (Budapeste, p. 30 e 31).

Fora da Hungria não há vida, diz o provérbio, e por tomá-lo ao pé da letra Kriska nunca se interessou em saber quem tinha sido eu, o que fazia, de onde vinha (...) se Kriska me surpreendesse desatento, batia palmas e dizia: a realidade, Kósta, volta à realidade (...) e nossa realidade, além das aulas cotidianas, era a Budapeste dos fins de semana alternados em que Pisti ficava a cargo do pai. (Budapeste, p. 68 e 69).

As referências espaciais, claramente, trazem as diferenças entre os dois países (Brasil e Hungria), no entanto, mais do que simples mudanças de cenário, as diferentes ambientações sugerem variadas conformações do protagonista e da própria narrativa. O Rio de Janeiro é o espaço onde José Costa vê sua vida esmorecer, estrangeiro que é em sua própria terra; Budapeste, cidade naturalmente dividia pelo Rio Danúbio e cujo ambiente parece mais propício para o personagem, é o espaço de descoberta e transformação, onde se faz protagonista Zsose Kósta. A mudança do nome aponta, justamente, para este aspecto da obra; o nome, marca da identidade do sujeito, assim como seu perfil psicológico, está dividido, fragmentado, exemplo característico da imagem do ex-cêntrico.
As construções romanescas referentes a tempo e espaço obedecem, então, este movimento. O tempo, no Rio de Janeiro, está mais relacionado à dicotomia velocidade / estagnação, demarcada no ritmo de trabalho e preocupações próprias do protagonista, por um lado e monotonia e desistência quanto ao relacionamento desgastado de José Costa com sua esposa Vanda, por outro. Budapeste, na maior das vezes, é o espaço do aprendizado, do novo, mas também propicia conflitos para José Costa, principalmente quanto à língua, que este busca compreender.
Sendo assim, o protagonista, em suas multifaces, torna-se o elo entre as duas instâncias narrativas. Rio de Janeiro e Budapeste não são conhecidas pelo mesmo indivíduo em sua completude, mas por diferentes faces da mesma persona, já que o olhar lançado sobre si mesmo, as cidades e os acontecimentos se delineia de formas distintas.
A construção narrativa é feita em primeira pessoa pelo narrador-personagem José Costa e a sua constituição na obra é fundamental para compreender uma das discussões basilares levantadas pela obra. A questão da autoria é evidente entre as abordadas pelo texto de Chico Buarque e tal já pode ser observada na configuração do narrador-personagem, um ghost-writer. José Costa escreve para o outro como se fosse o outro, mas, irônica e inexoravelmente, sobre si mesmo, sendo o seu relacionamento com o seu ofício repleto de contradições, crises e desconfianças. “Meu nome não aparecia, lógico, eu desde sempre estive destinado à sombra, mas que palavras minhas fossem atribuídas a nomes mais e mais ilustres era estimulante, era como progredir de sombra.” (BUARQUE, p. 16); “ Naquelas horas, ver minhas obras assinadas por estranhos me dava um prazer nervoso, um tipo de ciúme ao contrário. Porque para mim, não era o sujeito quem se apossava da minha escrita, era como se eu escrevesse no caderno dele.” (BUARQUE, p. 17-18).
O “ciúme ao contrário” sentido pelo personagem é reflexo da sensação de perda do que nunca foi seu. O sentimento experimentado por José Costa torna-se ainda mais perturbador quando Álvaro, responsável pela agência em que trabalhava, decide terceirizar algumas das atividades daquele. Neste momento, os novos funcionários contratados começam a escrever como José Costa e afinal, quem havia escrito as palavras dos textos emoldurados na parede? Eu, ou o outro, se questiona o personagem.



Mas numa noite em que me encontrava sozinho na agência, vagando os olhos pela agência da sala, deparei com um artigo de jornal numa moldura barroca, e o título A Madame e o Vernáculo me pareceu familiar. Fui olhar, e era matéria recente assinada pelo presidente da Academia Brasileira de Letras, para quem por acaso eu nunca escrevera, e só podia ser coisa do rapaz. Li a primeira linha, reli e parei, tive de dar o braço a torcer; eu não saberia introduzir aquele artigo senão com aquelas palavras. Fechei os olhos, achei que poderia adivinhar a frase seguinte, e lá estava ela, tal e qual. Cobri o texto com as mãos e fui removendo os dedos a cada milímetro, fui abrindo as palavras letra a letra como jogador de pôquer filando cartas, e eram precisamente as palavras que eu esperava. Então tentei as palavras mais inesperadas, neologismos, arcaísmos, um puta que o pariu sem mais nem menos, metáforas geniais que me ocorriam de improviso, e o que mais eu concebesse já se achava ali impresso sob as minhas mãos. Era aflitivo, era como ter um interlocutor que não parasse de tirar palavras da minha boca, era uma agonia. Era ter um plagiário que me antecedesse, ter um espião dentro do crânio, um vazamento na imaginação. (Budapeste, p. 24).

O processo metaficcional de elaboração da obra faz-se por meio de várias grandes metáforas (como a explicitada no trecho destacado), que permitem observar o texto sob seu caráter auto-reflexivo. Assim, o próprio ato da escrita mantém um papel principal em Budapeste e o jogo no qual se faz a literatura perde, enfim, os limites entre realidade e ficção. A posição do protagonista como ghost-writer reitera este aspecto no que tange à problemática da autoria. A manifestação discursiva enquanto expressão da subjetividade do indivíduo torna-se material de análise no texto de Chico Buarque, já que o personagem, como enunciador, só se reconhece no outro.

Escritura e leitura na construção de sentido:



José Costa vive na sombra do anonimato e até mais do que o reconhecimento de sua identidade como escritor, de seu nome “tão impessoal” grafado em letras góticas na capa de seus livros, o prazer sentido em ver seus textos lidos por sua esposa Vanda, mesmo sem que esta saiba ser dele, já lhe causa grande aflição:



Ver a Vanda correr os olhos sobre as minhas letras, esboçar um sorriso, apreciar um texto meu sem saber que o era, seria quase como vê-la se despir sem saber que eu a estava olhando. Mas não, ela pegava o jornal e revirava as páginas, olhava umas fotografias, lia as legendas, a Vanda não tinha paciência para grandes leituras. (Budapeste, p. 103).

As palavras não adivinham seus leitores, estão sempre vulneráveis às percepções mais agudas de quem quer que seja. Vanda não pode saber quais textos foram escritos por seu marido, no entanto, seu descaso causa incômodo em José Costa. Mais instigante apresenta-se este quadro ao se tratar do episódio que relata o hipotético relacionamento entre Vanda e Kaspar Krabbe, alemão a quem se atribui à autoria da biografia O Ginógrafo, escrita por José Costa. O protagonista não concebe a ideia de que sua esposa tenha se apaixonado pelo homem que escreveu aquelas palavras “absolutamente admiráveis”, enquanto pense que elas sejam de Kaspar Krabbe.



Saí no terraço, expus a capa à luz do sol, li, reli, e o título era esse mesmo, O Ginógrafo, autor, Kaspar Krabbe. Era o meu livro. (...) Verguei o livro, com o polegar deixei correr folha a folha como um baralho, e num átimo vi passar de trás para a frente milhares de palavras ilegíveis, tal qual um formigueiro em alvoroço. Até chegar à primeira página, nua, com uma dedicatória nítida, as letras um pouco tremidas, mas garrafais: para Wanda, lembrança do nosso tête-à-tête, encantado, K. K. (Budapeste, p. 80).

As referências, mesmo, à esposa, no episódio, podem ser interpretadas de acordo com os desvios na grafia de seu nome, após o suposto encontro: “E grafou Vanda com W, para atestar que por uma noite ela tinha sido Wanda, mulher de alemão.” (BUARQUE, p. 87). O protagonista se vê atormentado por tal ideia, mais pela sua condição de sombra, de anônimo, do que pelo distanciamento de sua mulher e seu relacionamento falido. Enfim, durante uma festa de ano-novo, José Costa assume a autoria de O Ginógrafo para Vanda, no máximo de sua ansiedade e a descrição desta passagem é reveladora: “Até que a orquestra em peso produziu um acorde seco, e antes que rebentassem aplausos, morteiros e gritaria, houve um átimo de silêncio. Naquele instante oco, com uma voz que não era a minha, lhe comuniquei: o autor do livro sou eu.” (BUARQUE, p. 112).
A voz que comunica a revelação da autoria não é a de José Costa, embora ele a enuncie. A transfiguração da voz, neste momento, revela, novamente, a problematização das questões de identidade abordadas no texto.



Aquilo de que nos lembramos, aquilo que marcou nossas leituras da infância, dizia Proust (...), não é o próprio livro, mas o cenário no qual nós o lemos, as impressões que acompanharam nossa leitura. A leitura tem a ver com empatia, projeção, identificação. Ela maltrata obrigatoriamente o livro, adapta-o às preocupações do leitor. (O demônio da teoria, p. 143).

Partindo de um argumento de Proust, destacado por Antoine Compagnon, pode-se estender as perspectivas acerca do estudo analítico de Budapeste, no que diz respeito ao papel do leitor na produção de sentido em seu contato com a obra. Sobre este aspecto, o caráter metaficcional expande seu campo interpretativo, proporcionando efeito deveras interessante por meio da escritura e leitura. José Costa faz-se personagem, narrador, autor e enfim, escritor da própria obra, após descobrir que foi lançado o livro denominado Budapest (única diferença na ausência do “e” final). Neste movimento, o leitor assume papel fundamental e o jogo da literatura se completa de forma mais profunda. Ao ler a última página de Budapeste e fechar o livro, o leitor se depara com o nome Budapest, autoria de Zsose Kósta. Os contornos lúdicos que ganham a obra fazem da ficção, realidade e da realidade, ficção; Zsose Kósta (personagem fictício) assina a autoria de seu livro, está este, concreto, nas mãos do leitor, de capa furta-cor, enquanto que o leitor (real) entra em contato direto com o romance e se faz ficção.



A capa furta-cor, eu não entendia a cor daquela capa, o título Budapest, eu não entendia o nome Zsose Kósta ali impresso, eu não tinha escrito aquele livro. Eu não sabia o que estava acontecendo, aquela gente à minha volta, eu não tinha nada a ver com aquilo. Eu queria devolver o livro, mas não sabia a quem, eu o recebera de Lantos, lorant & Budai e fiquei cego. (Budapeste, p. 167).

Zsose Kósta torna-se autor do livro que, como é expresso pelo próprio, por ele não foi escrito. O desfecho irônico da obra, tendo em vista a imagem do ghost-writer e seu livro escrito por outrem desconhecido, completa o texto metaficcional, quando os objetos pertinentes à ficção constroem-se no momento da leitura.
Perspectiva similar a de Proust, referida a Ingarden, revela o papel do leitor na construção de sentido de um texto, de acordo com suas leituras anteriores e suas experiências. Sobre este aspecto, leitura e escritura coincidem, organizando-se como dois pólos interpretativos que se encontram e se fazem entender pelas “fendas” deixadas no texto literário.



O texto literário é caracterizado por sua incompletude e a literatura se realiza na leitura. A literatura tem, pois, uma existência dupla e heterogênea. Ela existe independentemente da leitura, nos textos e nas bibliotecas, em potencial, por assim dizer, mas ela se concretiza somente pela leitura. O objeto literário autêntico é a própria interação do texto com o leitor. (O demônio da teoria, p. 149).

Deste modo, a obra de Chico Buarque pode ser analisada sob o foco da discussão da autoria. Afinal, quem é o autor de Budapest? Neste sentido, é possível a ideia de que o próprio leitor tenha uma parcela de responsabilidade quanto à autoria dos livros (tanto Budapeste, quanto Budapest).



E o eminente poeta Kocsis Ferenc, por ocasião do lançamento solene de Budapest, fez questão de me saudar em público na livraria Lantos, Lorant & Budai. Bem humorado, lastimou que seus Tercetos Secretos não houvessem deveras brotado da fantasiosa pena de Zsose Kósta, fazendo rir a multidão. O autor do meu livro não sou eu, emendei, levando a multidão às gargalhadas. Não era uma piada, mas como tal foi publicado o dito no dia seguinte... (Budapeste, p. 170).

O título de Kocsis Ferenc, original e verdadeiramente “brotado da fantasiosa pena de Zsose Kósta”, é mais seu que o aclamado Budapest, obra misteriosamente dirigida a este como de sua autoria. No intricado jogo de espelhos que se constitui o texto de Chico Buarque, revela-se uma relação intertextual entre os elementos internos da obra, como nas últimas palavras do livro. “E a mulher amada, de quem eu já sorvera o leite, me deu de beber a água com que havia lavado sua blusa.” (BUARQUE, p. 174). Estas mesmas palavras são as que encerram O Ginógrafo, escritas pelo protagonista para Kaspar Krabbe e lidas pelo alemão no suposto encontro com Vanda, como pode se constatar na página 87 do livro, em passagem idêntica. Realidade e ficção, originalidade e cópia, entram em questão ao se perder tais limites.
Para José Costa, ou Zsose Kósta, o reconhecimento de sua identidade se faz pela palavra do outro, pela despersonalização. O outro o significa e por isto mesmo o personagem oscila entre Rio e Budapeste, Vanda e Kriska, Joaquinzinho e Pisti, José Costa e Zsose Kósta, O Ginógrafo (assim como todos os textos por ele escritos) e Budapest, sendo, cada uma destas instâncias, partes, não opostas, mas complementares de um todo irrecuperável, porém reivindicado pelo sujeito contemporâneo.

Conclusão:

Sendo assim, este trabalho pôde apresentar um breve estudo do livro Budapeste, de Chico Buarque de Hollanda, “obra que conta a história de José Costa, um homem que se recolhe à sombra da sua literatura, cuja escrita possui um espaço em branco para outros assinarem”. Ressaltando-se a originalidade de estilo e especialmente, o modo como o sujeito é apresentado, de maneira fragmentada e deslocada, característica comum à estética contemporânea, este trabalho buscou permear as questões referentes aos elementos da narrativa e à posição do leitor, de forma a perscrutar as diferentes possibilidades interpretativas da problemática da identidade, na referida obra.


Referências:

BUARQUE DE HOLLANDA, Chico. Budapeste. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001.

HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo – História, Teoria, Ficção. Rio de Janeiro:

Imago Ed., 1991.







sábado, 19 de dezembro de 2009

A Cura


Por Hans Paul Mösl Junior


Temos aqui, a meu ver, um romance de fácil leitura com uma estrutura bem interessante.
O enredo de A Cura de Schopenhauer é a história do psiquiatra Julius Hertzfeld que descobre ter pouco tempo de vida devido a um câncer. O personagem passa a refletir sobre o que realmente importa e o que ele ainda pode fazer antes de morrer.
Enquanto lida com seu drama pessoal, o protagonista começa a lembrar de seus antigos casos e procura um homem em especial que ele no passado não conseguiu “curar”.
Em um último esforço o psiquiatra decide continuar com a terapia em grupo que ele coordenava com o intuito de tentar ajudar uma última leva de pacientes.
Em conjunto com a narrativa do romance, o autor vai adicionando, ao longo do livro, explicações muito interessantes sobre a obra de Arthur Schopenhauer, bem como mostrando sua importância no campo da psicanálise.
Apresentam-se ainda fatos interessantes sobre a vida de Schopenhauer, desde seu nascimento até o momento em que finalmente atinge seu objetivo: o reconhecimento.
Assim, Irvin D. Yalom concede a nós, leitores, um romance, uma biografia e uma análise da obra do grande filósofo alemão.

Triplamente recomendado.


Livro: A Cura de Schopenhauer
Autor: Irvin D. Yalom
Editora: Ediouro
Gênero: Romance
Ano: 2005

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Retratos de Clarice


Se há algo de definitivo a se dizer da prosa de Clarice Lispector, é que esta não é normal. E normalidade, em todos os sentidos, por ela é negada. Seja em relação à sua óbvia grandiosidade, representativa de nossa literatura, seja em relação aos aspectos intrínsecos de seu estilo deveras peculiar.
A palavra de Clarice (palavra viva, escrita com todo o corpo) revela uma prosa intimista, em que o próprio texto se faz personagem e age com toda sua personalidade sobre o leitor. Assim somos devorados por sua escrita labiríntica e vertiginosa, consumidos por seu pulso expressivo ao captar cada detalhe em todo instante de poesia.
Retratos de Clarice trata de sua última obra A Hora da Estrela, buscando compreender o funcionamento dos elementos narrativos sob variadas perspectivas.



Por Fellipe Marinelli

Desnudando uma Ótica Centralizadora - Por Que uma Máscara Autoral Masculina?
Clarice Lispector ao eleger como pseudo-autor e narrador de sua obra ficcional “A hora da estrela” a voz narrativa masculina, deseja colocar em debate a questão dos limites entre autoria e o fazer artístico, entre realidade e ficção, como também, e mais enfaticamente, colaborar para resolução das contradições a respeito da escrita feminina: uma modalidade de escritura analisada pela crítica literária da época como uma arte menor, e categorizada dessa maneira, por ser acusada de veicular um discurso de interesse específico das mulheres.
Sabiamente, a autora revestida da máscara autoral, do heterônimo Rodrigo S.M., afirma: “também eu não faço a menor falta, e até o que escrevo um outro escreveria / um outro escritor, sim, mas teria que ser homem, porque escritora pode lacrimejar piegas”. É de forma totalmente irônica que o deus, como se refere o narrador-personagem as mãos que o tece, justifica a sua escolha de uma voz masculina para a história a qual será construída. Ao revelar que qualquer escritor seria capaz de tecer um enredo ralo e insignificante como aquele, exceto às mulheres, Clarice sarcástica e intencionalmente põe em discussão o preconceito em relação à escrita classificada como feminina, além de questionar a profundidade das obras literárias concebidas pelas mãos legitimadas dos autores do “primeiro sexo”.
O romance “A hora da estrela” tem como objetivo central revelar a vida a uma moça nordestina, dentre milhares de outras; nordestina esta que fixou a sua imagem no interior do autor-narrador e reclama a sua existência. Rodrigo S.M. afirma que escreve, tentando libertar-se o mais rápido da presença angustiante dessa datilógrafa.
Ao arquitetar o enredo do romance e traçar os contornos da personagem Macabéa, Rodrigo que além de autor atua também como peça importante do enredo, aproveita-se do processo de escritura e criação para descobrir a si mesmo. É por meio do processo artístico de composição da personagem rala, insignificante, nadificada, ignorante, incompetente e feia, que o autor “fictício” ganha vida e contornos delineados, visto que sua vida possui duração limitada, pois durará o tempo destinado à narração da hora de Macabéa.
Mesmo sendo dependente desta moça nordestina para ganhar a vida, já que se constrói no mesmo momento da materialização do signo linguístico, o autor e narrador-personagem da obra diegética julga-a, carnavaliza e desconstroi toda a sua humanidade, e mais, aponta suas características incompatíveis com a feminilidade, isto é, a impossibilidade da nordestina em tornar-se mulher.
A personagem Macabéa é toda construída sob amarras e limitações. O narrador-personagem, Rodrigo S.M., priva-a de se constituir como mulher, do contato com o mundo, dos desejos e vontades, da sensualidade. Ele a narra como sendo subterrânea e, por esse motivo, não havia tido, nem nunca haveria de ter floração, porque a datilógrafa era “capim vagabundo”.
É interessante ressaltar, que ao atribuir as funções de autor e narrador a um ser ficcional do gênero masculino, a autora real da obra literária deseja desnudar a ótica masculina, isto é, revelar por meio de voz textual máscula o pensamento e posições ideológicas preconceituosas / passadistas dos integrantes deste gênero centralizador em relação às mulheres e questões ligadas à feminilidade.
Através do discurso pronunciado pelo narrador-personagem, nós leitores somos tomados ora por uma intensa e constante angústia, ora por uma sensação de repulsa e raiva, por observar um tipo humano passivo, miserável e confortado de sua condição: o de representar somente o papel reservado a exercer.
O pseudo-autor atribui a personagem Macabéa características destrutivas, precárias e miseráveis, fazendo com que ela não seja enquadrada em nenhuma categoria, por ser dessemelhante de todas as existentes. A personagem é formada pelas avessas, pela paródia, podendo dessa maneira dizer que ela é o contrário de todas as especificidades femininas, simplesmente por ser ausente de elementos biótipos da feminilidade.
Macabéa é composta de maneira antitética em comparação ao estereótipo feminino em vigor: “[...] mal tem corpo para vender [...]”; “[...] assoava o nariz na barra da combinação, não tinha aquela coisa delicada que se chama encanto [...]”; “[...] o fato de vir a ser mulher não parecia pertencer à sua vocação [...]”. Ao dizer o explicitado acima, o narrador sugere que faltava-lhe a substância, isto é, o “delicado essencial”. Enquanto a ótica patriarcal observa a mulher como um ser animalizado, não dotado de razão, portanto tendo a necessidade de ser domado e adestrado, a fim de controlar os ilimitados desejos; a personagem alagoana é arquitetada em oposição a esta visão padronizada. Macabéa quase não possui desejos, ou quando os tem, esquece-os e arrepende-se de tê-los tido; não faz questionamentos; aceita resignada às criticas e sua condição miserável e, é satisfeita, mesmo sendo oprimida por e subserviente a um sistema social indiferente.
Enfim, ao trazer para o campo literário uma mulher tão díspare dos demais tipos femininos, uma figura feminina sem vigor, sem personalidade, sem encanto, ausente de desejos e “incompetente para a vida”; Clarice – ou o próprio Rodrigo – deseja[m] promover uma consistente reflexão que tangencia as ilusórias diferenças entre a posição e função do homem e da mulher no contexto sociológico e histórico.

Prosseguindo os assuntos debatidos neste trabalho, devemos retomar questões levantadas, porém pouco desenvolvidas. Então, no início desta segunda parte, sugerimos que ao tecer sua última obra ficcional, a novela “A hora da estrela”, Clarice Lispector desejasse desabafar, colocando em evidência problematizações sobre a categorização da escrita sexista, definida assim, por teorias biológicas e anatômicas.
É sabido que nenhum ser humano ao nascer possui uma sexualidade definida. Como afirma Freud em uma das suas asserções: “ninguém nasce homem ou mulher – tornamo-nos homens ou mulheres ao atravessar com sucesso o percurso edípico.” Utilizando o explicitado pelo psicanalista Freud, desejo assinalar que o que identifica a escrita como sendo pertencente a modalidade feminina, não são, tampouco, os traços naturais sinalizados pelo indivíduo de posse do texto, mas sim, quando o registro tanto no plano temático quanto no expressivo / simbólico apresentam um discurso e uma melodia narrativa tão somente encontrada na feminilidade.
Macabéa intencionalmente é um ser ficcional constituído segundo a ótica centralizadora e castradora do universo masculino, já que é por meio das diferenças apontadas no físico, ações e pensamentos da nordestina, em comparação aos demais tipos femininos, que a autora revela sua opinião divergente da alienada sociedade, porque desconsidera a diferença entre homens e mulheres.

Não se trata apenas de narrativa, é antes de tudo vida primária que respira, respira, respira. Material poroso, um dia viverei aqui a vida de uma molécula com seu estrondo possível de átomos. O que escrevo é mais do que invenção, é minha obrigação contar sobre essa moça entre milhares delas. È dever meu, nem que seja e pouca arte, o de revelar-lhe a vida.
Porque há o direito ao grito.
Então eu grito.
(A Hora da Estrela, 1998 p.13)

Na tessitura textual podem-se detectar marcas específicas da modalidade de escrita adjetivada como feminina, ou seja, é observável um modo de tecer cujo desejo é romper os limites do próprio signo lingüístico, na luta infindável de coisificá-lo e dessimbolizá-lo. Além de ser um tipo de escritura que se distancia dos demais pelo víeis simbólico, o registrado na obra literária de Clarice diferencia-se das atribuídas aos autores homens, pelo fato de se envolver com a queda de tabus sociais, com as questões ligadas à mulher e por destronar de maneira bastante equilibrada, as posições ideológicas, sociais e culturais hegemônicas que oprimem, inferiorizam, excluem e restringem o ser humano em categorias fixas, definidas somente pelas forças naturais sinalizadas pelo corpo, ou seja, pelos órgãos sexuais.
Referências Bibliográficas:
HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Imago.
LISPECTOR, Clarisse. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.SANTOS, Jair Ferreira de. O que é pós-moderno. 10.ed. São Paulo: Brasiliense, 1991.

(Fellipe Marinelli é estudante do 8º período de Letras,
no Centro Universitário Plínio Leite)




Por Idrissa Novo
(Des)Conformação dos Personagens em "A Hora da Estrela"
1. PANORAMA LITERÁRIO

O Modernismo foi um movimento preocupado em anular tudo o que antes existia. Para a nova escola, negar o passado era uma maneira de se formar o presente e pensar no futuro.
Esse novo período literário teve seu surgimento no Brasil com a chamada “Semana de 22”, que propunha ideias inovadoras, pautadas nas vanguardas européias: futurismo, cubismo, expressionismo, dadaísmo e surrealismo.
Os Andrades, Oswald e Mário, construíam suas obras sob o princípio de negar o lusitanismo exacerbado e edificar uma identidade essencialmente brasileira – indígena, negra e branca ao mesmo tempo –, uma perspectiva nacionalista.
A dita segunda fase modernista, contrariamente neste ponto, opõe-se ao caráter demolidor da produção literária da geração anterior, substituindo as propostas de destruição da tradição por uma perspectiva construtiva, que revaloriza o passado e amadurece os ideais primordiais.
Esse ponto de vista construtivo aponta já para aquela que se convém chamar de terceira fase modernista. Os autores dessa geração procuram atingir o senso de compromisso entre o senso e realidade, valorando o engajamento de suas obras na vida social. Além disso, praticam a literatura como constante pesquisa de linguagem.
Dos escritores de renome dessa fase modernista, releva-se aqui Clarisse Lispector, não mais importante que os outros, mas aquela unicamente capaz de dialogar tão bem com as fronteiras do indizível.

2. CLARISSE LISPECTOR – (PÓS) MODERNISTA

No século XIX, Friedrich Nietzsche houvera proclamado a morte do Deus soberano e absoluto. Ao lado da vertiginosa aceleração técnico-científica, da velocidade e do progresso, assimilava-se a ausência de valores humanos, proporcionados pela família e pela religião – instituições ainda sólidas.
Mais tarde, a partir dos anos 60, Derrida começa a formar a ideia de que o homem não é um ser bidimensional, cartesiano. Atormentado por mais não ser estruturado, o sujeito entra em crise: sou nada? sou tudo? sou nada e tudo? Está, então, marcado o “surgimento efetivo” do chamado pós-modernismo.
O homem pós-moderno é hedonista, consumista, amante da tecnociência. Vive na sociedade do espetáculo; prefere o virtual ao real (hiperreal simulado). Tem que fazer escolhas e tomar decisões de maneira rápida, impulsiva. E, acima de tudo, é fragmentado: uma unidade constituída de pluralidade.
A partir desse pensamento, é que se fala em desreferencialização do real e dessubistancialização do sujeito: 1) o referente não é mais reconhecido na realidade e sim no seu simulacro; 2) o sujeito não mais reconhece a sua identidade, desconstruída pela avalanche de informações que o cercam.
Mas, enfim, o que Clarisse tem a ver com esse pós-modernismo? Ela não pertence à escola modernista?
Ora, bem se sabe que a literatura não é um estudo de cronologia. As ideias mais veementes de um período não deixam de existir subitamente para que outras emirjam do nada.
Deste modo, quando se traça uma ponte entre Clarisse e a literatura pós-modernista, está se querendo valorar a sua forma de fazer poético. Assim como essa nova postura literária, a escritora não mais segue à linearidade, não constrói personagens bem definidos – é o reconhecimento também da descentralização da escrita.

3. A HORA DA ESTRELA

Um exemplo dessa escrita não-linear da Clarisse é a novela A hora da estrela. Aqui breve faremos um comentário sobre o enredo do livro, para que logo após se teça um específico estudo sobre os principais personagens desta trama.
Macabéa é uma nordestina que tem sua história contada por Rodrigo S. M., máscara autoral de Clarisse. A moça é uma mísera datilógrafa, desprovida de beleza e que mal tem a consciência de existir. Conhece a paixão através de Olímpico, nordestino ladrão e assassino, que logo a troca por Glória, colega de trabalho de Macabéa.
No mais, consulta uma cartomante, que lhe predestina um glorioso futuro, mas acaba por ter um fim desastroso – a morte por atropelamento. Finalmente, chegara a hora da estrela.



4. PERSONAGENS

Como já se sabe, Rodrigo S. M. é o narrador d’A hora da estrela. Ele diz que a sua história terá sete personagens. No entanto, apenas cinco são mais relevantes: Macabéa, Olímpico, Glória, a cartomante Carlota e o próprio narrador.
Macabéa é a personagem principal. Vinda de origem nordestina, era considerada “desprovida de insígnias femininas”; estava perdida em si mesma. Símbolo do não ter e do não ser – sem beleza, inteligência, riqueza. Sem família, sem centro. Representa aquele que está marginalizado; é capim.
Gostava das curiosidades banais. Era uma datilógrafa que errava demais e não sabia se expressar. Virgem e inócua – pura e inocente. Mas, até onde ia essa pureza? Somente no corpo? Talvez no espírito. Ou mais: na linguagem simples. Assim como a língua, virgem e inócua. Macabéa é, então, a própria palavra. A própria existência.
Suas perguntas eram aparentemente desinteressantes. Todavia, não está nas coisas mais simples, a existência? O nada revela a existência. Macabéa é “vida primária que respira, respira, respira”.
Mesmo assim, era dispensada por todos. Até por sua única paixão – Olímpico. Como a moça, ele era nordestino. Contudo, ao contrário de Macabéa, ele tinha a seu favor o dom do discurso. Era ladrão e assassino, de caráter definido. Era fértil, viril.
Logo dispensa a moça de “óvulos murchos” para ficar com a colega de trabalho de Macabéa. Glória (que nome sugestivo) era bem-sucedida profissionalmente – estenógrafa hábil -, tinha sensualidade e era “filha de açougueiro”. Tinha estabilidade e status – “carioca da gema”.
Desamparada, depois de tanta humilhação, a nordestina vai a uma cartomante (sugestão de Glória). A vidente Carlota representa a figura da mãe zelosa. Personagem cheia de dualidades é santa e prostituta; ex-caftina e temente a Deus. Vivia na periferia – lugar onde se encontram os místicos.
É ela a responsável por “levantar o véu da verdadeira condição existencial de Macabéa”. Com o discurso altamente fluente, primeiro revela à moça a vida desafortunada que esta possui. Depois, constrói um texto bem estruturado em que relata as soluções para os problemas enfrentados por Macabéa. Ela reverte a derrota em vitória.
O futuro de Macabéa está traçado. Ela descobre a hora em que pode finalmente ser estrela: na hora de sua morte.

4.1. Rodrigo S. M. e Macabéa

Um dos personagens mais interessantes na obra é Rodrigo S. M. Primeiro, porque, como já dito, ele representa a “máscara autoral” de Clarisse Lispector. Temos aí a primeira questão instigante acerca desse narrador. A escritora elege um homem para contar a história de uma mulher. Por quê?
Ora, um homem é, sociamente constituído, como um ser lógico, objetivo. Portanto, pode muito bem contar algo de forma imparcial, sem muita melancolia, utilizando uma linguagem “simples, fria e calculista”. Rodrigo não pinta Macabéa; ele a fotografa.
Entretanto, o mais interessante nesse personagem é a sua relação com Macabéa. Parece que ao relatar a história da moça, o narrador se auto-descobre. Ao mesmo tempo em que descreve as características da nordestina, questiona as sua própria condição humana na sociedade.
Às vezes, ele deseja o segredo; noutras o grito. Macabéa também ora se auto-questiona, ora sente explosão.
Rodrigo, paulatinamente, constrói a nordestina – “trabalho de carpintaria”. Macabéa é uma vida, que se ergue pouco a pouco. Por isso, faz-se necessário falar do processo de construção, dando-nos a impressão de que criar é um processo demorado e que requer paciência, assim como o fazer poético.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

De tudo o que foi falado, o que se pode apreender sobre Clarisse é esse jeito especial e singular de falar de questões aparentemente indizíveis. Também, ponderar sobre o processo de construção poética, por meio da história de uma nordestina, faz-nos reconhecer a genialidade dessa grande escritora para escrever como uma canção que vai-volta e nos embala.



6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Imago.
LISPECTOR, Clarisse. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.SANTOS, Jair Ferreira de. O que é pós-moderno. 10.ed. São Paulo: Brasiliense, 1991.


(Idrissa Novo é estudante do 6º período de Letras,
no Centro Universitário Plínio Leite)












quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Henri Cartier-Bresson

Henri Cartier-Bresson nasceu no dia 22 de agosto de 1908 e morreu, aos 95 anos, no dia 2 de agosto de 2004. Foi um dos mais importantes fotógrafos do século XX. Durante uma viagem a Marselha, ele descobriu verdadeiramente a fotografia, inspirado por uma fotografia do húngaro Martin Munkacsi, publicada na revista Photographies (1931), onde os 3 meninos negros nus no Congo, que saem correndo em direção às ondas do mar, numa coreografia de dança, com a liberdade genuína do ser humano. Dizem aqueles que o conhecem, que é a única foto em sua parede.


Entre 1932 e 1934, Cartier-Bresson fez algumas de suas melhores fotografias. Apesar de ter começado olhando para os despossuídos e oprimidos, principais temas dos foto-jornalismo, muito cedo estas mesmas fotos impressionaram a França, Espanha, Itália, México, como arte, muito mais do que como reportagem. Durante a Segunda Guerra Mundial, Bresson serviu o exército francês e foi capturado e levado para um campo de prisioneiros de guerra. Tentou por duas vezes escapar e somente na terceira obteve sucesso. Momentos antes de ser capturado pelo exército alemão, Cartier-bresson conseguiu enterrar sua leica em um local seguro. Ela foi desenterrada por ele logo após a sua terceira tentativa de fuga, dessa vez bem-sucedida.Em 1946 ficou sabendo que o MOMA estava planejando uma exibição póstuma de suas fotos, pois achavam que ele havia morrido na guerra. Informados de que Bresson estava vivo, a exposição foi transformada em uma retrospectiva de suas fotos em meio de carreira. Após a guerra, Cartier-Bresson, em 1947, fundou a agência fotográfica Magnum junto com Bill Vandivert, Robert Capa, George Rodger e David Seymour "Chim". Revistas como a Life, Vogue e Harper's Bazaar contrataram-no para viajar o mundo e registrar imagens únicas. Entre 1948 e 1950, fotografou o fim do domínio britânico na Índia e o assassinato de Mohandas Gandhi. Na China fotografou os primeiros meses de Mao Tse Tung. Este período estabeleu sua reputação como foto-jornalista de incomparável sensibilidade e habilidade. Tendo trabalhado mais de meio século a capturar o drama humano com sua câmera, é considerado por muitos como o pai do fotojornalismo.

Desprezava fotografias arranjadas e cenários artificiais. Seu conceito de fotografia baseava-se no que ele chamava de "o momento decisivo" -- quando todos os elementos externos estão no lugar ideal. A fotografia por si só não o interessava, somente a reportagem fotográfica, onde há a comunicação entre o homem e o mundo. Não tinha imaginação para fazer cinema, somente fotografia, por isto filmou documentários. Dentre eles LE RETOUR, um documentário sobre os campos nazistas e a volta da guerra. Essas e muitas outras fotos podem agora ser conferidas no livro Fotógrafo, que a Editora Sesc-SP acaba de lançar no mercado nacional. Trata-se de 155 imagens selecionadas pelo próprio Cartier-Bresson em 1979. O livro ainda tem prefácio do poeta francês Yves Bonnefoy, traduzido por Célia Euvaldo.



''FOTOGRAFAR É COLOCAR NA MESMA LINHA DE MIRA, A CABEÇA, O OLHO E O CORAÇÃO.'' Henri Cartier-Bresson

Claudio Junior

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Rir é o melhor remédio?


Certamente, a adaptação para o teatro de uma obra literária daquele que, por não poucos, é considerado o maior nome da literatura destas terras tropicais, não é tarefa fácil. O escritor é ninguém mais ninguém menos que Machado de Assis e a obra de que se trata é o seu conto de 1882, “O Alienista”.
O cinema nacional oferece exemplos tenebrosos de releituras precipitadas, assim como no teatro, não raro, tropeçam as produções em olhares totalmente despropositados da obra machadiana.
“O Alienista: Uma Leitura Esquizofrênica” mostra, justamente, o oposto; a adaptação do conto clássico do Bruxo do Cosme Velho para a encenação de um monólogo é impecável.
“Com a pena da galhofa e a tinta da melancolia”, a peça é pintada, sendo ressaltados os aspectos exatos pelos quais a obra do escritor faz-se perene. A ironia fina é prato cheio para o ator Gustavo Ottoni, de cuja língua escorre veneno e a quem se deve (em especial) o mérito de fazer da arte em cena, espetáculo. Transmutando-se freneticamente numa gama de personagens, assume, ora na imagem do excêntrico Dr. Simão Bacamarte, ora no retrato das figuras mais bizarras que habitam a vila de Itaguaí, o grotesco peculiar dos tipos humanos microscopicamente analisados no conto de Machado, enquanto denuncia uma sociedade hipócrita, guiada pelas aparências e jogos de interesses (não muito diferente da que conhecemos atualmente).
A discussão continua no debate filosófico acerca dos limites tênues entre razão e insanidade, sendo posta em questão o influente papel da ciência, que, no século XIX, exercia a sua inquisição do pensamento.
Apostando no humor inteligente e sagacidade, o monólogo prende o espectador durante todo o tempo. O cenário intimista, composto por apenas uma única cadeira, além da iluminação preciosa, que toma conta do palco com sua coloração verde, fazem com que o público vivencie o universo absurdo da Casa de Orates do Dr. Bacamarte.
Para quem sofre da doença do tédio e da mesmice contagiosa de comédias que abusam do apelo sexual e palavreado chulo gratuito, eis o remédio. “O Alienista: Uma Leitura Esquizofrênica” capta o espírito do texto de Machado na dose certa. Altamente recomendável.

Direção: Gustavo Ottoni e Letícia Guimarães

Local: Teatro da UFF, Rua Miguel de Frias, 9, Icaraí, Niterói

Dias: 21, 22 e 23 de agosto

Horários: Sexta e sábado, às 21h Domingo, às 20h

Ingressos: R$ 30, R$ 20 (com filipeta), R$ 15 (estudantes, servidores da UFF e maiores de 60 anos)

Classificação etária: 12 anos